A entrevista a seguir foi realizada por Guilherme Paoliello e Rainer Patriota no dia 15 de abril de 2014, na biblioteca do Departamento de Música do Instituto de Filosofia, Artes e Cultura da UFOP.

Em que momento da vida você tomou contato com a música e como veio a se tornar um músico profissional?

Nasci no interior da Argentina, em Córdoba, no campo, e meu pai não era um homem estudado, passou no máximo quarenta dias na escola, sempre foi autodidata; ele tocava violão, um estilo folclórico que havia desaparecido da minha região, parecido com o que os músicos fazem no nordeste em cima das escalas modais. Era baseado num modo sobre o qual se improvisavam versos e que veio a ser chamado de Milonga. Isso foi quando eu ainda era criança e meu pai tentava lembrar, pois já não existia mais, ninguém gravava esse tipo de música. Havia desaparecido, mas ele tocava e mal saia de casa, pois já tinha uns 60 anos, assim eu o ouvia toda noite; ele sentava com um chimarrão e pegava o violão; eu dormia toda noite com isso. Então esse foi o meu primeiro contato.

Era tradição na família que as mulheres alfabetizassem as crianças, então nos organizávamos e alguém dava aula, sempre havia alguma mulher para dar aula; então, em julho, comemorávamos o dia da pátria, assim faziam uma festa para as crianças e, à noite, havia uma velada para os adultos, e isto acontecia em minha casa; nessa época eu tinha uns 5 anos. Mas meus irmãos mais velhos já tinham uma idade mais avançada, um deles já estava cantando na cidade, era funcionário público, e conhecia alguns músicos. Daí ele convidou um trio para tocar nessa “velada”; a velada é uma festa, espécie de forró, um baile, ou algo do tipo. Aí veio este trio que era violino, bandoneon e violão. Foi a primeira vez que vi e ouvi um bandoneon. Apesar de ter ainda o violino e o violão, o som do bandoneon me fascinou e ali fiquei até a hora que pararam e me levaram para dormir. A partir desse momento, fiquei fascinado não só pela música, mas por esse instrumento, pelo bandoneon, mas na idade que eu estava mas conseguia pegar no instrumento: era pesado, minha mão não era suficiente para o teclado, o bandoneon era muito grande pra mim, mas eu insistia. Havia um primo que foi criado na minha casa e que tinha um bom ouvido; ele tocava sanfona nas veladas e me disse: olhe, tenho uma sanfona ali que está velha, por que você não pega?

Assim comecei a tocar, mas o som era horrível, o que eu queria era o bandoneon…Acabei largando a sanfona. Chegando aos meus sete, oito anos, comecei a frequentar a cidade e a escola pública; meu irmão, que era funcionário público na cidade, tomava conta de mim em uma casa alugada em Córdoba pela família; mas o que mais me interessava, me movia, era a música, até que ele me disse: “Se você passar de ano na escola a gente conversa.”.

O tempo foi passando e eu precisava de um bandoneon, até que meu irmão disse que iria conseguir um para mim, vendeu uma máquina de escrever e comprou um instrumento usado; comecei com ele, aos pouco fui buscando alguns acordes, melodias e assim evoluindo, “tirando” de ouvido. Meu irmão então percebeu que eu iria mesmo tocar o instrumento e me colocou em uma academia para estudar música. Foi aí que comecei a estudar, mas como eu tinha dificuldade em leitura e facilidade com o ouvido, perguntava ao professor: “como se faz isso?” Ele tocava uma vez para me mostrar e eu, de ouvido, repetia, “enrolava” mesmo [para não ler]…Assim se passaram um, dois anos e meu irmão, satisfeito, decidiu comprar um outro bandoneon para mim, não um novo, mas um instrumento de estudo decente. Nesta época eu faria dez anos de idade. Já começava a tocar em Córdoba, uma cidade com muita atividade nesse aspecto. Comecei a ficar conhecido, pois era difícil encontrar uma criança de dez anos tocando bandoneon. Fui viver numa cidade histórica para tocar e tocava toda noite, pois o freguês entrava no estabelecimento e queria ouvir a música. Era pago com notas bem coloridas, era o que eu queria, apesar de nem saber o valor. Foi esse o meu começo.

Quando fiz onze anos, lembro de um programa em Córdoba, um programa para crianças que tocavam e cantavam, me apresentei lá, e assim fiquei conhecido e fui tocando em festas, estabelecimentos… Na época, todas as emissoras tinham programas de auditório, e as orquestras ensaiavam para tocar no programa. Foi então que vi uma orquestra de tango com bandoneon. Certo dia, vi esse instrumentista tocando Bach, era a primeira vez que ouvia aquilo, e me fascinou tanto quanto o bandoneon, mas eu não conseguia tirar [a música] de ouvido de maneira alguma; o tema principal até que sim, mas e o resto? E a imitação? Eu queria muito tocar aquela música. Então vim a conhecer o amigo do segundo bandoneon dessa orquestra em um aniversário de um amigo da minha irmã; ele havia levado o bandoneon e tocado. Conversei com ele e disse que tinha ouvido o bandoneon. Ele confirmou: “Ah, sim, o Pedro”. Disse a ele que queria tocar a música que tinha ouvido. Ele me disse que não podia me ensinar, mas que me apresentaria a Pedro Garbero para que ele me ensinasse a tocar. Aí sim, voltei para os estudos de música e foi quando realmente estudei teoria.

Aos 16 anos, passei a tocar pela primeira vez em uma orquestra profissional de tango, onde era preciso saber ler música, ter técnica, pois os arranjos eram muito difíceis, havia exigência com sonoridade etc. Nesse momento, na década de 1940, ainda existia um grande mercado de trabalho na música popular, que eram os cafés-concerto. Córdoba era a segunda capital do país, só no centro havia sete cafés-concertos e duas feiras populares, que eram lugares para se sentar e ouvir música, ficar em silêncio para apreciar a música. Então, como profissional, tinha que sobreviver, pois o rendimento vinha das várias apresentações do dia, nos cafés-concerto, apesar de o recebimento ser mensal. Outro mercado de trabalho para essa música eram os programas de auditório ao vivo. Todas as três emissoras de Córdoba tinham programas de auditório, [cujo trabalho] também era pago mensalmente, de modo que ganhava dois salários fixos por mês; fora isso, saía em turnê, cerca de trinta a quarenta dias de viagem. Achava que minha vida estava feita e ninguém questionava a minha profissão. É verdade que pensavam que, chegando a certa idade, eu levaria a vida mais a sério e pararia de tocar, assim como [havia] a preocupação com a saúde e a proximidade à boemia; mas eu nunca tive nenhum problema desse tipo.

Quando completei 21 anos fui para Buenos Aires, contratado por uma orquestra para fazer um teste e para tocar em Buenos Aires, que é a terra do bandoneon; vindo do interior você teria que tocar muito bem e continuar estudando, pois a competição era muito forte. Então Marco Lorenzo disse que pagava minha passagem de ida; se eu passasse, ganhava a passagem de volta, se não passasse, não ganhava. Acabei passando no teste e fiquei contratado por dois anos em Buenos Aires; quando acabou o contrato já não havia mais nada; fecharam todos os cafés-concertos de Córdoba e Buenos Aires; era o fim de várias orquestras e conjuntos de tango.

O que o trouxe ao Brasil, em quais ambientes musicais você circulou em seus primeiros anos no pais e como se deu sua transferência para a Bahia?

Em Buenos Aires já não dava mais para continuar tocando músicas tradicionais, e comecei a passar para a música erudita. Assim fiz a prova no conservatório nacional para violoncelo, outro instrumento que me fascinava, e fiquei estudando por uns dois ou três anos; praticamente só estudei durante minha estada em Buenos Aires. O que me interessava na época era a América Latina, pois podia ir de um país a outro de ônibus ou de trem; assim, saí de Buenos Aires com um trio e comecei a viajar, ficando cerca de três ou quatro meses em cada país; passei por Equador, Bolívia, Venezuela, Peru, Chile. Em La Paz, um produtor quis gravar dois LPs, e na época só havia estúdios profissionais em Buenos Aires e São Paulo. Dessa forma é que fui “cair” em São Paulo. Quando saí da Argentina, queria um país que o substituísse, em que pudesse continuar estudando e focar mais ainda no estudo da composição, mas com um requisito: sobreviver. E para sobreviver eu teria que tocar o bandoneon, que era o instrumento que eu dominava.

Em São Paulo, comecei a trabalhar com arranjos para diversas formações, baseando-me nos meus estudos em harmonia e contraponto que adquiri no conservatório e também em meu conhecimento em música popular. Isso se resolveu bem em São Paulo, pois as gravadoras necessitavam de trabalho de arranjo e por acaso conheci um músico que em duas semanas me apresentou um dos maiores compositores da época, o Olivier Toni, que dava alguns cursos de harmonia e contraponto para os integrantes da orquestra, de graça. Falaram de mim para ele e ele ficou interessado em me ensinar. O curso dele era de uma hora por semana, mas eu aproveitava a hora do café, do intervalo da orquestra, para tirar dúvidas e apresentar o material desenvolvido. Ele me incentivou muito, dizendo que devia continuar estudando e compondo. Aí comecei sozinho a compor; apresentava [o material] para ele, ele sentava ao piano e dizia: “É isso mesmo, composição não é difícil, não é um bicho de sete cabeças. O segredo é saber orquestrar; você pode até ser um pequeno compositor, mas se souber orquestrar funciona muito bem.”. Mas não era tão simples, pois para orquestrar era preciso uma orquestra; assim, comecei a analisar gravações de clássicos; eu ia à biblioteca municipal, onde haviam cabines com partitura e fui estudando as orquestrações, principalmente de música romântica. Na época não havia muitas gravações de orquestras contemporâneas. Foi ele quem me apresentou Ravel; fiquei meses e meses só estudando e analisando Ravel. Não trabalhei muitos compositores, por falta mesmo de material, me concentrei muito em Ravel e Beethoven. Então, eu tinha um quarteto para tocar às noites; o nosso pianista, Lázaro Wenvl, teve que viajar, se ausentar do quarteto por dois anos. E aí aparece um rapaz, um baiano, pianista de jazz, Luís Carlos Pécora, em São Paulo. Ele começou a aplicar a música contemporânea nos arranjos do quarteto, e trouxe com ele o livro “Técnica da orquestra contemporânea” [de Alfredo Casella e Virgilio Mortari], que ninguém tinha. E eu pensava: “Esse cara não sabe o que sabe”. Ele me deu dois livros importantes para meu estudo de orquestração contemporânea.

E você já compunha nessa época?

Escrevia alguns arranjos, por exemplo, para peças de Piazzola, que não era conhecido na época, andava desaparecido. E assim um grande músico e produtor da RGE me disse: “Você vive gravando aqui, por que não grava algo para você?”. Eu dizia que não tinha nada, que estava estudando música erudita e contemporânea, “tem dez anos que vivo como músico, não quero não”. Mas ele foi insistindo, insistindo, até que concordei. Então me perguntou: “O que você quer gravar?” Disse que me interessava em gravar Piazzola, e ele, “gravar Piazzola, como é esse Piazzola?”. Peguei o bandoneon e toquei um tango de Piazzola, e ele reagiu: “Mas isso é tango?”. E olhe que ele era músico! Me pediu uma semana para estudar o caso e depois me disse que eu poderia gravar Piazzola, mas desde que também gravasse seis tangos tradicionais. Foi então que gravei o disco “Tango de Vanguarda” [1966], que considero um preparo para entrar na composição. Depois da produção do disco, comecei a compor. A primeira composição foi em 1968 para o Festival de Música Contemporânea, em São Caetano do Sul, e um grupo de que eu participava estava fazendo um trabalho que acabou resultando na Fundação das Artes de São Caetano do Sul; neste festival, foram tocadas obras de Almeida Prado, Guerra-Peixe, Claudio Santoro, entre outros, e eu fiz Oito variações para orquestra de cordas sobre um tema pentatônico; esta foi minha primeira obra. Em 1969 veio o Festival de Música da Guanabara, e eu enviei essa obra; o festival tinha um prêmio que somava quase o que eu recebia por ano; era uma boa premiação. Para toda a minha geração, esse festival foi essencial, pois determinou quem ia ser compositor no país, abriu o caminho para todos; fui um dos classificados da etapa de São Paulo, depois fui para a semifinal e para a final; estava um pouco surpreso com a colocação: 1o lugar para Almeida Prado, 2o para Marlos Nobre, 3o para Lindembergue Cardoso, 4a para Fernando Cerqueira e 5o para Milton Gomes e eu fiquei em 6o, com um “prêmio estímulo”. Era notável o grupo de compositores baianos neste festival e, na época, a Bahia era a “Meca” da música de vanguarda e da composição; aproveitei a primeira oportunidade e me inseri na Bahia – entrei para um grupo de percussão, onde tocava piano preparado.

Nessa fase, o volume de composições era muito grande?

Sim, era muito grande, só na Bahia havia no mínimo dois festivais por ano, um para alunos e outro para compositores profissionais, depois surgiu um de música latino-americana e outro de música experimental, que era financiado e trazia as últimas novidades da música alemã, os compositores mais avançados da Alemanha. Era uma época de criação. A coisa era tão forte nessa época que passei de 1970 a 1976 [trabalhando] em uma cantata e tornei a escrever partitura. Na época, não havia necessidade de partitura, eu escrevia gráficos, pois era um músico de vanguarda. A intenção não era ser um clássico da vanguarda, a obra que era escrita hoje, era jogada fora amanhã, pois era basicamente uma experimentação. Minha primeira obra multimedia ficou perdida. Foi estreada no Teatro Vila Velha. Havia grupo de dança, desenho animado, coral universitário, teatro, cinema. Acho que essa foi a primeira ópera multimedia de que se tem notícia. Mas era escrita em gráfico e ninguém se importava muito em manter registros, era mais uma intenção oral, uma proposta que os compositores não sabiam no que ia resultar.

Eu pensava a vanguarda, filosoficamente, esteticamente, como um direito que o artista deve ter, ou antes deve conquistar, de experimentar, arriscar, fracassar ou acertar; assumia isso filosoficamente. E isso implicava a ideia de risco, de chamar o público a uma experiência de risco. Em 1973 escrevi uma ópera que era um grupo de dez pessoas polivalentes, todos tinham de ser músicos, cantores, bailarinos, cenógrafos, iluminadores. Preparamos essa ópera, mas ela não tinha um argumento fixo, uma estrutura fixa, poderia começar de qualquer lugar, a ópera era inacabada, contando também com a participação do público. Isso nunca havia sido pensado em uma ópera, era uma coisa absurda, não tinha argumento, não tinha solista, não tinha libreto, tinhas apenas um material. Mas coisas surpreendentes aconteciam. De repente, projetada na tela, vinha uma mão grande, enorme, que tentava agarrar o bailarino que dançava no palco; ele se defendia, lutava contra aquela mão gigante que surgia na tela maior que ele…era uma crítica ao que estava acontecendo na época, à prisão das pessoas. Mas como artista de vanguarda, eu tinha que dar a mão à palmatória e dizer ao público: “essa é uma obra aberta, não está pronta. Alguém da plateia tem alguma ideia para essa iluminação, para essa música? Podemos fazer diferente?”. Eis que aparece uma cara, que tava na plateia, e diz: “eu paguei e entrei no teatro para ver um espetáculo, não para participar”. Eu disse: “bom, você vai ter que esperar, pois o espetáculo não está pronto, mas vai ficar e, se possível, com sua participação” – “não eu não participo”, ele disse. Mas aí, em meio ao debate que surgiu, se levantou uma garota e fez um discurso em nossa defesa: “aqui é assim mesmo, um lugar sagrado, ninguém se atreve a nada…mas eu não vim aqui para ficar sentada como se estivesse no século XVII, quero entender o que é a vanguarda, quero participar”. A menina foi aplaudida e nossa proposta saiu vitoriosa. O cara era um crítico da Folha de São Paulo e foi correndo para a redação; ele queria acabar com a gente. Ele escreveu dizendo que aquilo era uma mentira, um deboche, que não havia ópera nenhuma, não havia solista, nem música…Depois dessa crítica, o teatro lotou…Eu tinha levado um saco cheio de apito e sai distribuindo para as pessoas e sugerindo que cantassem ou tocassem. Fizemos um coral com aquela massa…ficamos três dias ensaiando e as pessoas foram lá e pagaram ingresso para ensaiar e discutir…Depois reencontrei esse crítico, em 1975, na Semana de Música da Bahia, em São Paulo, um evento em que reunimos todo o pessoal da tropicália, Caetano, Gil, Tom Zé, Gal Costa. Ele veio falar comigo e perguntou se eu tinha uma má lembrança dele. Eu respondi que não, pois ele havia feito justamente o que eu queria, que era provocar o debate. Esses caras eram radicais, reacionários e queriam acabar com a vanguarda. Depois eu soube que ele foi me procurar porque tinha conversado com um músico que havia tocado uma peça minha e esse músico tinha dito a ele: “você sabe com quem você está se metendo? Esse cara é músico pra caralho. Você caiu na provocação dele”.

Como foi sua mudança para Minas Gerais? Dentro da sua obra, que é muito vasta, seria possível mapear essas mudanças em fases?

Cheguei a Minas no Festival de Inverno de 1976. Na época, o festival tinha um espaço para a criação musical, se você fosse compositor, você teria que criar, ali mesmo, com os alunos e com os professores, a gente trabalhava das 8 às 17 horas dando aula e depois iniciava os ensaios. Eu tinha entendido que precisava entrar na experimentação para saber o que podia descobrir nesta área. Entre 1974 e 1976, comecei uma fase em que trabalhava muito com música para teatro, dança e cinema, me questionando sobre o que era a revolução para o movimento da dança para o corpo do ator, para a voz e a criação. Me envolvi tanto com isso que cheguei a pensar – e me foi dito isso – que estava me afastando muito da composição, mas depois de um tempo passei a entender que quando subo no palco e me apresento estou representando alguma coisa, então, não é só música que estou fazendo, é teatro também. Comecei a querer ver a arte toda como uma coisa só, passei a buscar isso. Bom, no Festival de Inverno eu estava lidando com uma atividade formativa, com jovens de vários países da América Latina buscando uma formação, eles não vinham preparados, com uma relação, assim, radical com a música, vinham mais com uma curiosidade. Então eu teria que introduzir a música contemporânea de vanguarda, porém fui devagar, criando gráficos mistos, para poder possibilitar a criação e o entendimento; comecei a fazer partituras mistas e assim fui introduzindo essas pessoas nessa nova linguagem. Isso tudo me leva a outra fase. A Fundação de Educação Artística de Belo Horizonte queria uma obra criada em que participassem os profissionais da área, mas aqui em Minas não se fazia muita música contemporânea, então fomos fazer uma cantata que introduzisse esses profissionais. E assim fiz a cantata Zero Hora. Nesta fase, começo a reunir elementos culturais de raiz; enquanto vanguarda eu não havia visto necessidade de inserir esses elementos, pois era uma ideia aberta, livre. Quando você começa a tentar consolidar uma proposta, uma estética em relação à música e à arte, aí você tem que considerar todos os aspectos.

Então, para você a vanguarda é uma fase de experimentação, que guia o compositor em sua busca?

Sim, claro, ele se guia e escreve sua história com seu próprio tempo e tudo isso vem com esse processo.

Você compôs duas óperas ou cantatas cênicas sobre obras de Guimarães Rosa, Balada para Matraga e Sertão: Sertões. Esses dois trabalhos são muito diferentes, o primeiro utiliza uma linguagem mais experimental e o segundo incorpora elementos rítmicos do tango (compassos alternados, por exemplo), além de timbres tipicamente brasileiros, como um naipe de violas caipiras. Seria possível destacar pontos de semelhança e diferença entre as duas?

Com o pensamento de inserir elementos de raiz à minha música, e depois desse processo de experimentação, eu chego à obra de Guimarães Rosa. Então, passei pelo processo de aplicar a experiência no sentido de abrir o processo de composição para outros elementos. Fui incorporando e observando: “para onde vou?”. Até que chegou a hora em que me indaguei qual era a minha intenção, qual o meu momento nessa etapa; assim, comecei a ampliar e a entrar na literatura, me aprofundando nessa linguagem e buscando os pontos de referência destes autores, a fim de ligá-los aos meus trabalhos. Na literatura de Guimarães Rosa e na minha vivência no Vale do Jequitinhonha, através de festivais que participei por cerca de quatro anos, encontrei uma forma de identidade entre a origem da literatura e a minha experiência. Por exemplo, a minha obra Nheegari foi baseada no livro “Maira”, de Darcy Ribeiro. Foi uma literatura que me interessou, assim como Guimarães Rosa, pois eram materiais que tinham conteúdo e profundidade suficiente para a construção de uma obra musical. Em Balada para Matraga, além da literatura que eu tinha como referência, encontrei um novo obstáculo, a composição de uma ópera, mas não seria de forma alguma uma ópera clássica; na minha concepção havia outras pessoas que podiam fazer melhor do que eu, como já teve; então, tomei a decisão de fazer uma ópera contemporânea, queria fazer o melhor que pudesse para que o público saísse encantado e emocionado com esta ópera, mas não no formato de uma ópera clássica. Essa ideia gerou algumas discussões de como seria sua escrita, então, dei ênfase ao tempo, ao “timing dramático” das cenas, para que a emoção não se perdesse, para que fosse notada. Só haveria canto onde fosse preciso, onde não fosse, o corpo completaria muito bem; tinha um coral, uma orquestra e atores. De um modo geral, a orquestra sempre fica no fosso, mas a música faz parte do espetáculo, é 60% do espetáculo, então todos os músicos deveriam ficar no palco, tanto a orquestra quanto o coro; felizmente, acertei, pois foi a única ópera contemporânea que, depois de uma temporada, tornou a se apresentar por mais uma temporada.

Depois disso, eu venho com a obra baseada no Grande Sertão: Veredas, a Sertão: Sertões, que é uma obra muito mais densa, mais rica que Matraga. Então eu pensei: vou trabalhar com toda a parte cênica normalmente, mas a música vai carregar todo um figurino, um tapete, um sertão “soando”. Então tive que descobrir qual a massa tímbrica que iria utilizar, tinha que buscar essa sonoridade. Infelizmente, não tinha gravação de vídeo de boa qualidade nesta época, os registros são péssimos. O público que ia ao teatro desde o início entrava no clima, ficava calado, concentrado na obra, ninguém levantava e deixava o teatro, o que geralmente acontece em óperas; nunca tinha visto algo parecido, a compenetração do público era muito grande e a música era parada, monótona, mas representava muito bem o sertão. E foi dito por Vilma Guimarães Rosa, numa entrevista quando da apresentação de “Sertão Sertões”: “Olha, eu não sei como ele conseguiu colocar o sertão dentro desse teatro.”

O que você está desenvolvendo atualmente? Quais seus projetos daqui pra frente?

Eu diria que, nos últimos dez anos, venho me dedicando a uma coisa que sempre me indagou, uma coisa que eu sinto que luta para sobreviver, que é difícil de sobreviver, que é o problema da música instrumental. Isso me levou a pensar que a música instrumental acústica fala, que pensa, não se pode jogar isso fora, é uma arte absoluta, total, isso é muito importante. Como se vai jogar fora isso? Na última década tenho me dedicado a música instrumental, com a possibilidade dos instrumentos abrirem caminhos que não tivemos antes.

Gravação e Transcrição: Rômulo de Paula Leite da Silva
Artefilosofia, Ouro Preto, n.16, Julho 2014

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