As notas do encarte reúnem uma história sucinta do bandoneon, considerações sobre a técnica instrumental (com exemplos em partitura), comentários a seu uso na música contemporânea e notas sobre cada peça do programa, mais um longo e evocativo texto autobiográfico do compositor e intérprete Rufo Herrera.
Tudo isso merece registro, porque dá a medida do disco Bandoneon: o mesmo respeito, a mesma atenção afetuosa dedicada à música se volta também para nós, convocados, sem condescendência, a habitar esse espaço tão raro.
De um homem chamado Rufo, esperava-se que tocasse tímpanos. Mas o “duende” lhe apareceu em 1938, na província de Córdoba (Argentina), e definiu a trajetória do menino de cinco anos “de encontro ao [seu” destino”.
Eram 38 botões para a mão direita e 33 para esquerda, a serem tocados por quatro dedos de cada (o polegar da direita aciona uma válvula de ar, o da esquerda ajuda a segurar o instrumento). Filho de um camponês, foi aprendendo sozinho, até ganhar fama tocando em festas e programas de rádio.
Estudou música, integrou orquestras de tango, viajou, quis fazer carreira como bandoneonista sério, interpretando Bach e Chopin. Só pediam “Garufa”, tango que teve de repetir 22 vezes numa boate, antes de desistir do bandoneon e voltar-se para a vanguarda. Aqui em São Paulo, foi guiado pelo maestro Olivier Toni; na década de 1970, ligou-se ao Grupo de Compositores da Universidade Federal da Bahia; finalmente radicou-se em Minas.
Só em 1986, depois de assistir, espantado, a uma apresentação de Astor Piazzolla e seu quinteto em Belo Horizonte, para uma platéia de 1.800 pessoas, teve a coragem de “pedir perdão” e voltar ao instrumento. Acolhido nas bienais de música contemporânea e salas de concerto, seu bandoneon agora transita livremente entre registros bem diversos ou nem tanto, se o que conta é o sentido humano da música. Lançado no ano em que Rufo Herrera completa 70 anos, o CD “Bandoneon” resume boa parte dessa bela história: a vida que gira em torno de uma paixão sem nome, cujo veículo é um estranho instrumento musical.
Rufo toca composições próprias, acompanhado pela Orquestra Experimental da Universidade Federal de Ouro Preto; também toca Bach e Piazzolla, e uma versão para bandoneon e cordas de “El Choclo”, milonga clássica de Angel Villoldo, que “nos carrega em alegrias de outras viagens”, no final do disco. Um detalhe serve de emblema: as apojaturas de “Solidão”. Apojatura é uma nota “vizinha” acentuada, antes de resolver na que pertence ao acorde. Típica do tango, foi usada com eloqüência por Piazzolla; também aparece, por exemplo, em cantatas de Bach ilustrando a palavra “tragen” (carregar), para dar um exemplo mais preciso ainda, que ecoa alucinatoriamente nas nostalgias de Rufo.
É lindo ver esse professor, de olhos fechados, solitário em sua música, cheio de alunos à volta. De encontro ao seu destino: completando outro círculo de revelação e aprendizado, e abrindo as comportas do sentimento com as notas do seu bandoneon.
Arthur Nestrowisky,
da Folha de S.Paulo