Nascido em um pequeno vilarejo pertencente à província de Córdoba (Argentina), filho de um “payador campesino” (como ele mesmo define) e acostumado a ouvir as zambas e chacareras improvisadas por seu pai ao violão, Rufo Herrera teve seu cotidiano interrompido ainda criança.

Na fatídica noite de julho, durante um pequeno festejo nas propriedades de sua família, em comemoração a Festa da Independência, Rufo ouviu fascinado, pela primeira vez, o canto do bandoneón. O magnetismo que o instrumento exerceu no outrora menino, sentenciou a vida do mestre. Naquele exato momento iniciou-se uma intensa relação que permanece ad eternum. Ali começou a ser escrita a história do extraordinário músico que fez do bandoneón extensão de seu próprio corpo.

Peço licença a você leitor, mas para falar do bandoneón é necessário certo cuidado e elegância com as palavras. Elegância condizente com a sonoridade do instrumento e com seu timbre característico, carregado de nostálgica melancolia. As letras aqui proferidas estão alicerçadas pela sabedoria e prodigiosa memória do bandoneonista argentino Rufo Herrera (1933), tal qual personagem de Jorge Luís Borges (o escritor pelo qual mantém profunda admiração), em “Funes, o Memorioso”.

Alemão em sua raiz, sagrado em seu propósito. O bandoneón foi cunhado em meados do século XIX por Henrich Band com a finalidade de substituir os pesados e dispendiosos órgãos dos templos, tão caros à cerimonia religiosa. Especula-se que fora utilizado para harmonizar e manter a afinação de corais. O desuso do bandoneón em tarefas de evangelização, paralelo à consolidação da música popular urbana como expressão artística, pareceu o estímulo necessário para que Ernst Louis Arnold adquirisse o invento, em 1864. Empenhado no trabalho de aperfeiçoá-lo, ao antever, tal qual um oráculo germânico, possibilidades sonoras e comerciais, Ernst Lois dessacraliza o instrumento e dá vida ao bandoneón.

Pelas mãos de Ernst Louis, o processo de fabricação do bandoneón foi elevado ao status de arte, oculta nos saberes e fazeres de seu progenitor. O processo, quase alquímico, foi repassado a seus filhos Ernst Hermann Arnold, Paul e Alfred Arnold. O primeiro seguiu os passos de manufatura do pai, originando o bandoneón de marca ELA. Os dois últimos detentores do ofício secreto produziram o emblemático bandoneón Doble A (AA). Raros como um Stradivarius, foram fabricados até meados do séc. XX. Verdadeiros incunábulos (se a metáfora permitir) apresentando, cada um à sua maneira, singular tessitura, potência e capacidade. A exemplo da incessante busca pela Pedra Filosofal, os poucos luthiers que dominam o método de construir o bandoneón, ambicionam que suas criações alcancem a tão almejada sonoridade do Doble A e do ELA. Algo intangível, até o momento.

O instrumento aporta na Bacia do Prata com as imigrações do final do século XIX. Resigna, pois, seu passado religioso, quando ressignificado pelo Tango. Argentino em sua alma, expressão maior da profana sensualidade tanguera, o canto do bandoneón é hino, “é o amor que não se deu, o céu que uma vez sonhamos”, diz o poeta portenho Homero Manzi, na canção Che Bandoneón, musicada pelo grande bandoneonísta Aníbal Trilo.

A aura de raridade que ecoa do instrumento justifica-se no caminho de sua complexa materialidade. Guarda consigo segredos e labirintos espantosos em sua feitura. Um enigma de 2800 peças. Afiná-lo é sacrifício pelo sacrifício. É rito que exige que as linguetas de aço que o compõe sejam lixadas, pouco a pouco dilaceradas. É como se cortássemos nossas cordas vocais para mantermos a voz, a fala e o canto livres das imperfeições mundanas. Talvez por isso, haja apenas 60 mil deles no mundo, 20 mil na Argentina e, menos ainda, Doble A(s) e ELA(s), estes, em processo de acelerada extinção.

Sacrifício análogo presta-se o músico que ousa tocá-lo. De fato, é um instrumento de difícil execução. “A música te dá em troca, exatamente o que você oferece a ela. Nem mais, nem menos”, filosofa Rufo Herrera. A máxima do mestre se impregna de sentido, quando pensamos na relação entre o bandoneonista e o bandoneón. Para além da prática diária, o bandoneón exige comprometimento e proximidade, dedicação e afeto, paixão e, por que não, ódio. Exige, por fim, um pacto silencioso entre ele, o músico, ora suserano, ora vassalo de seu soberano: o bandoneón.

Por Saulo Rios

© 2017 Rufo Herrera